segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

UM POUQUINHO DO 1º CAPÍTULO:


Vitória Bonelli

            Estávamos em meados de novembro dos encantados anos de um mil novecentos e setenta e dois, pouco depois da sete horas da noite; Luciano Cavalari, funcionário público na Vara da infância e juventude, no fórum de Penapolis, tinha vinte e cinco anos de idade, branco, magro, cabelos pretos bem aparados, de estatura normal e estava sentado na poltrona da sala de estar bem à frente de sua jovem esposa Sara, de vinte e um anos, também branca, de cabelos negros longos, que sendo casados a pouco menos de um ano, estava então no quinto mês de gestação do tão sonhado primeiro filho. Devido o cansaço do rotineiro dia de uma dona de casa e as pernas que incham devido estado de gravidez, Sara estava então deitada no outro sofá, que a gente chama de três lugares, assistindo em preto e branco, pela tevê Tupy de São Paulo, a emocionante telenovela “Vitória Bonelli”, que narra o drama de uma mulher, Vitória, interpretada pela atriz Berta Zemel, que acabava de ficar viúva ao lado de seus quatro filhos, todos jovens e que foram batizados com os nomes bíblicos: Thiago (Tony Ramos), Mateus (Carlos Alberto Ricceli), Lucas (Flaminio Fávero) e Verônica (Anna Maria Dias).
            Devido o calor dessa época do ano, o casal adquiriu o costume em deixar a porta de entrada da casa, que fica a apenas três metros de distância para o portão que leva à rua, sempre aberta, durante todo o período em que ficava ali naquela sala assistindo a programação de tevê, que geralmente começava para eles às sete horas da noite, com aquela telenovela, depois, o telejornal na mesma emissora, seguido depois pela telenovela da Tevê Globo, “Selva de Pedra” com os grandes astros Regina Duarte, Francisco Cuoco, Dina Sfat, Carlos Eduardo Dolabella, Mario Lago, Gilberto Martinho, Arlete Salles, Sônia Braga, Heloisa Helena, Gloria Pires... E depois, pela Tevê Record, os seriados semanais: Bonanza, Dakitari, Kung Fú...
            Naquela noite porem, por estar um pouco fria, devido um esquisito vento gelado, Luciano, mesmo sem se levantar usando os pés, empurrou a porta, fechando-a, alheio ao que acontecia do lado de fora. Sara então lhe chamou a atenção:
            — Você fechou a porta! Tem um menininho que sempre assiste à novela, encostado no portão!
            — Como assim? — Se espantou Luciano, levantando-se imediatamente.
            — Uma criança! — Explicou Sara, sem se levantar. — Toda noite ele está aí!
            Luciano abriu a porta apressadamente e como não havia ninguém no portão, seguiu rapidamente até ele, de onde pode ver uma criança branca, maltrapilha, descalça, magra, de uns dez anos de idade, cabelos castanhos, que cabisbaixa, se afastava lentamente para o final da rua deserta e sem asfalto.
            — Hei menino! — Chamou-o Luciano.
            Ele olhou para trás e talvez pensando que não fosse consigo voltou a caminhar lentamente. Mas como não seria com ele, se eram as duas únicas pessoas naquele lugar ermo, tendo por companhia apenas a pouca claridade, que as lâmpadas de talvez cem watts, produziam do alto dos postes de iluminação pública.
            — Menino! Espere! — Insistiu Luciano.
            Ele tornou a parar se virando e apontando o polegar para o próprio peito, perguntou timidamente:
            — Eu?
            — Venha cá!
            Meio receoso voltou até a uns dois metros de seu interlocutor.
            — Você estava assistindo a novela? — Perguntou-lhe Luciano.
            Ele apenas deu de ombros como a dizer: “o que importa?”
            — Desculpe-me eu ter fechado a porta! Não sabia que você estava aí!
            Deu de ombros novamente.
            — Gosta de assistir Vitória Bonelli?
            Novamente os ombros falaram por ele.
            — Você não sabe falar?
            — Sei!
            — Gosta da novela?
            — Gosto! — Confirmou timidamente.
            É claro que ele gostava da novela, já que mendigava aquele aparelho todos os dias, ali, sentado no chão junto ao portão, acompanhando toda aquela trama.
            Luciano abriu o portão, chamando-o:
            — Entre aqui! Vamos assistir juntos!
            — Não! Obrigado! — Negou ele receoso.
            — Venha garoto! Não vou lhe fazer mal! Assista à novela, depois você vai embora!
            Apesar de tímido, receoso, lentamente ele adentrou ao portão, acompanhando o estranho. Na entrada da sala, sentando-se no degrau de saída, insinuou:
            — Assisto aqui na porta!
            — Sente-se aqui no sofá! Aqui só estamos eu e minha esposa.
            — Estou sujo!
            — Não te preocupes menino! — Insinuou Sara, com leve sorriso. — O sofá também está sujo!
            Timidamente sentou-se na ponta daquela poltrona de apenas um lugar, de tal jeito que, caberiam uns dez dele.
Apesar de achar engraçado o seu jeito tímido, Luciano segurou por seu corpo frágil, forçando-o a sentar-se corretamente e assim ele permaneceu em silêncio, com seus olhinhos de criança paupérrima, vidrados na “Vitória Bonelli”.
            Apesar da paixão, naquela noite, Luciano acabou por não assistir a novela. Quer dizer: assistiu, mais não prestou muita atenção, pois, apaixonado por crianças como sempre foi, acabou passando o tempo concentrado nas atitudes silenciosas daquele menino humilde.
            Na verdade: humilde era jeito da gente pensar, devido seu estado maltrapilho, usando uma camisa de algodão bege, mal abotoada; uma calça tipo shorte, também de algodão, azul marinho, muito curta, que o fazia parecer mais um francesinho, com seus cabelos castanhos curtos, despenteados, olhos da mesma cor e sorriso maroto. Porém, dava para perceber que ele não era um menino desamparado pela sorte ingrata. Apesar de sujo, ele não fedia como uma criança abandonada; exilava sim, o odor de suor de criança que havia brincado bastante. Ou seja: ele não teria tomado banho ainda; deveria fazer isso na hora de dormir. Crianças dessa época tinham seu tempo muito ocupado e banho era coisa supérflua; alem do mais, o desagradável fedor de suor e mau hálito, aparecem com mais intensidade em adolescentes, a partir de seus catorze anos de idade. Qualquer um sabe que o odor de suor de criança, é diferente do odor de suor de um adulto.
            Mas era pobre. Com certeza não tinha seu próprio televisor, pois se humilhava a assistir a de um estranho, sentado no portão da rua. Mas isto não dizia nada. Apenas poucos privilegiados, ricos ou com bom emprego, como Luciano, tinham em sua casa esse luxo chamado televisor, geladeira, sofá... No máximo cinco por cento da população penapolense tinha isso; os demais, se queiram, tinham que se aventurar nos parquinhos públicos, onde a prefeitura fornecia esse bem, com imagens em preto e branco, para seus cidadãos se descontraírem.
            Portanto naquela noite, devido essa visita inesperada, Luciano acabou por se desconcentrar da novela, ou seja: seus olhos viam a televisão e toda sua trama em volta de “Vitória Bonelli”, batalhando com o filho caçula, Lucas, em prol de cuidar de sua cantina lotada, mas seu pensamento estava mais naquele menino que não desgrudava seus olhinhos da tela de vinte e seis polegadas em preto e branco do televisor Telefunken.